DEPOIMENTO DE FERNANDA DIAS
DESSASSAMBLAGES © António Conceição Júnior
UMA TRANQUILA FORÇA
Ignoro como ultrapassar os outros.
Tudo o que sei é ultrapassar-me a mim mesmo...
Yagyü, Mestre de Kendo do Shogun Tokugawa
De onde surgiu, ou melhor, como desabrochou a criatividade de António Conceição Júnior?
Da sua infância Macaense, marcada pela incurável melancolia da perda de uma mãe bela e mítica? Da lenta aprendizagem da solidão interior? Porque nascem alguns seres assim predestinados para a arte, a pontos dessa inclinação se tornar tão natural como uma respiração?
Quem guardou com amor os primeiros esbocetos de António Conceição Júnior? Quem acalentou os seus sonhos, quem exorcizou os seus medos? Quem, na escura mansarda onde sonham os meninos rasgou janelas de claridade?
Encontrar um caminho e percorrê-lo, apropriar-se dos mais variados instrumentos, aprender a dominá-los com perícia e rigor. Chegar à descoberta da beleza na sua prodigiosa simplicidade. Assim defino a coerência da obra com a personalidade do seu criador.
Segundo Homero, o artista aprende de Héfestos e de Palas Atenea os segredos do “Saber Fazer”, uma das mais nobres vertentes da sabedoria. O pensamento e a acção concretizados num saber activo, “Téchne” e “Ars”: um prodígio que orquestrou os estilos de vida ao longo dos milénios, e criou imperecíveis modelos estéticos.
Sabemos que António construiu os seus elaborados jardins e torres num território flutuante, sobre a sagrada contiguidade das civilizações, recolhendo a cor e a vibração de inumeráveis testemunhos da espiritualidade humana: frescos, telas, cerâmicas sedas, bronzes, escritas, melodias, crenças e vias, armas eternas e flores efémeras. Dos confins do Mundo Mediterrânico aos Mares do Sul da China. Lá onde o homem se maravilhou perante o fruto do encontro do sonho com as mãos, António descobriu Forma Matéria e a Luz que ilumina os Sentidos. Na sua peregrinação interior foi ilustrador e pintor, escultor e calígrafo, trovador e coreógrafo, cenógrafo e criador de moda, fotógrafo, museógrafo e designer gráfico, mestre de Aikido e cibernauta. Aceitando o desafio de cada Arte, que na sua vocação própria, procura o que nas outras não pode ser encontrado - eterna aliança do criador com as proposições plásticas do seu tempo. E se António passou continuamente de um suporte a outro, sob o signo do rigor caminhou. Tão raro que essa viagem sensorial pelos materiais seja feita por um só homem!
Como não invocar aqui a magia dos seus modelos de alta costura? Contos antigos contados pelas cores sumptuosas, ocres das areias, bronzes dos vasos antigos, cinábrios e terras queimadas dos resíduos de mundos perdidos.
No surpreendente conjunto de esculturas denominado Desassamblages, um patente minimalismo esconde (ou revela?) a sedução do Japão, na silenciosa identidade do “objecto em si”, levado para fora do utilitarismo por uma tranquila força.
Em António, o “choque cultural” foi solo, arado, semente e adubo, fogo e seiva de uma seara sem fronteiras.
Criar como existir.
“ O ser humano deve transbordar de vitalidade” diz o Livro II do manual do guerreiro, Hagakure.
Novembro em Macau: uma brisa fresca alisa as águas do Delta das Pérolas. Sob a velhas figueiras-do-pagode que restam, entretecidas na malha urbana, ainda brincam crianças. No silêncio do seu atelier António persiste serenamente no seu labor, transformando uma haste de madeira de magnólia numa bainha de sabre de linhas puras e toque acetinado. Ainda bem António. Cada objecto que tu tocas é elevado a uma nova dignidade.
Macau, 24 de Novembro de 2000
Fernanda Dias
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