DEPOIMENTO DE JOSÉ OLIVEIRA BARATA



Pode surpreender que se afirme, neste tempo de indiferença massificada, que a  capacidade de indignação seja uma virtude quase sacral. E mais profano surgirá aos ouvidos de um qualquer mortal bem pensante que o acto criador, na sua essência mais purificadora, purificada e purificante, radique, quase sempre, numa indignação que bebe no etimológico indignus . 

Mais prosaicamente: perante a indignação que a realidade por vezes nos provoca, perante a violência que nos agride, o criador dignifica a realidade para no-la devolver sublimada e decantada na forma que, desde logo, é uma dignificação do criador e de quem vê, porque todo o acto de leitura artística pressupõe, sempre, um acto de apropriação.


É pois, este jogo de cumplicidades, esta poética dos sentidos que tornam o criador um ser por natureza conflitual, repartido, heteronímico, quer se invoque ou não, a lição de Pessoa.


Conheci o António Conceição Júnior na minha passagem por Macau, entre os anos de 1995 e 1997. E conheci-o, convirá dizê-lo, fora dos circuitos institucionais; aliás, onde melhor se conhecem os criadores.


Homem de Macau, português angustiado com o trilhar sinuoso com que os vários poderes se vão entretendo – por entre flores de retórica e fachadas mediáticas – a, mais uma vez, nada fazer pela cultura que é nossa e de que não temos que nos envergonhar, António Conceição Júnior é um homem indignado no mais nobre sentido da palavra.


Diz-me que cria sem angústia e com plena tranquilidade. Não acredito. Mas sei o que me quer dizer não dizendo... Vejo-o procurar a paz noutros paradigmas que não são os meus de ocidental não maastrichiano, para mais e por demais marcado geracionalmente. Adivinho-lhe as contradições. No fundo, é só perceber que a dignidade que procura é similar à elegância das linhas que desenha, ou à textura dos tecidos que escolhe. Mas, poeticamente, julgo tudo ser facilmente explicável: o traço, o corte, a busca de estesia, entre o helénico e o oriental, são a tradução da paz digna que quer mostrar aos outros, esforçando-se por ocultar a sua justificada indignação.


Foi Rousseau quem disse que gostava mais de ser um homem de paradoxo do que homem de preconceitos. O António é um normalíssimo cidadão; apenas se distingue pela anormal coerência com que vive e sofre o real. Não basta para chegar a santo; mas situa-o nos rituais iniciáticos que o fazem militar nas hostes dos muitos sacerdotes laicos que sempre têm sobre os demais, a possibilidade de ir cometendo pequenos pecados, coisas de pequena monta que nem que os tutelares deuses caseiros sempre acabam por desculpar na sua infinita generosidade.


Porém o António é também Conceição. A mesma raíz de conceber ; com saber, ou seja, com arte de métier feito, e provas dadas como o atesta o seu vasto curriculum.


Homem multifacetado, gostaria de ter conhecido o artesão Leonardo da Vinci; e estou certo, gostaria de lhe ter ouvido aquela espantosa máxima: "Nunca se mente sobre o passado". Porque o passado é o caldo histórico-cultural onde mergulhamos para repensar este brevíssimo trânsito terrestre. Ou, talvez, seja apenas mais uma fonte para nos redimirmos de indignações primeiras.


Os traços de A. Conceição Júnior são Acrílicos, Mitos, Molduras, que nos sinalizam Visões de civilizações complementares que a História se encarregará de aproximar, pois os homens estão "condenados a compreender-se".


Mas o António também é Júnior. É o mais novo. Desde logo, dele próprio. Nele coexiste, sob a aparente tranquilidade de um treinado autodomínio, a rebeldia e violência criadora do júnior que nunca se deve deixar de ser.


Sofridamente, carrega consigo um Rasto de Seda, uma oriental brisa soprada por um desconcertante leque musical que se expressa entre o sussurro e a raiva, quase inaudível, ou tonitruante, em explosões necessárias ao equilíbrio dos opostos. Porém, tudo digna e paradoxalmente expresso pela indignação poética deste Amigo conhecido e intuído.


José Oliveira Barata

Professor Catedrático da Faculdade de Letras

Univerdidade de Coimbra


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