FIGURAS DE JADE • ANTÓNIO CONCEIÇÃO JÚNIOR

 "Quando eu penso um homem sábio, seus méritos parecem ser como o jade"
Livro dos Versos











António Aresta autor de Figuras de Jade 

OS PORTUGUESES NO EXTREMO ORIENTE


ANTÓNIO CONCEIÇÃO JÚNIOR

 

António Conceição Júnior é um dos vultos marcantes da identidade cultural portuguesa contemporânea de Macau. No artigo “Tempo e Memória” desvenda com nitidez uma parte da sua genealogia social e cultural em torno do importante jornal “Notícias de Macau”, ainda à espera de ser digitalizado e estudado, incluindo a sua enorme e pioneira atividade editorial. Encontramos aí uma boa parte da aristocracia cultural de Macau, onde pontificava a sua Mãe, Deolinda da Conceição, uma jornalista e escritora de fina sensibilidade e originalidade. Mas dentro desse pequeno cosmos, não podemos esquecer Hermann Machado Monteiro, Domingos Rosa Duque, Adelino da Conceição, Mário de Abreu, o Major Cabreira Henriques, António Maria da Conceição, Patrício Guterres, entre outros, figuras que, com exceção de Luís Gonzaga Gomes, resvalaram injustamente para uma nota de rodapé da história social de Macau. O tempo das incertezas e das indiferenças em que vivemos não parece acolher uma hermenêutica que valorize os lances biográficos de grande elevação moral e educativa.

António Conceição Júnior, espírito culto, informado e originalmente polifacetado, escritor, pintor, gravador, fotógrafo, criador de moda, dirigiu o Museu Luís de Camões e os Serviços Recreativos e Culturais do Leal Senado de Macau onde comissariou umas boas dezenas de grandes Exposições temporárias de arte ou de índole etno-antropológica, trazendo desse modo um invejável cosmopolitismo à cidade. Isso representa muito bem o exemplo vivo da partilha do sensível, na perspectiva estética que Jacques Rancière cunhou. A alma de artista está presente em todas as parcelas da sua vida, incluindo nas aulas de Religião e Moral, leccionadas pelo Padre Manuel Teixeira no Liceu de Macau, e onde recorda com um humor irreverente, “ele distribuía santinhos e eu caricaturas”.

A história cultural de Macau necessita de conhecimentos de fronteira e que indaguem a complexidade da sua ideografia para se libertar de alguma egolatria dos descobrimentos e de uma aparente preciosa mineração de velharias escolásticas e bacocas, trazidas à boleia na Carreira das Índias. O legado intelectual de Manuel da Silva Mendes vai nesse sentido, lançando perguntas altissonantes que fazem tremer o poder político e abrindo-se a diversas paixões, em torno da arte, da filosofia ou da ética na governação da cidade, sempre com a liberdade como horizonte definitivo. Depois, como estamos num espaço luso-chinês ou sino-português, António Conceição Júnior tem a coragem de dizer, no importante volume “Conversas do Chá e do Café”, publicado em 2011, “Até hoje a leitura sobre a filosofia chinesa tem-se subordinado, pelo menos aqui na China, à perspectiva conceptual da metafísica tradicional do ocidente. Pouca importância parece dar-se à interpretação filosófica e histórica, numa perspectiva inteiramente chinesa do tempo”. Ora, o tempo em Santo Agostinho ou o tempo em Bergson rege-se por outros parâmetros de interioridade que não são compatíveis com o mundo chinês. Parece que a nossa presença é superficial e que estamos enredados na contraditória angústia de nos perdermos, por entre sensações de madre-pérola, quase uma demissão de espírito perante uma outra poderosa metafísica do quotidiano. Notava o padre Benjamim Videira Pires que “Os Extremos Conciliam-se”, aliás o título de um dos seus grandes livros, publicado em 1988, mas todos sabemos quão intrincado e ambíguo é esse caminho que muitas vezes escapa ao narrador. Holderlin advertia-nos que a salvação andava sempre a par da perdição, fundando-se aí uma nova versão da antropologia da vulnerabilidade.

Este livro é importante a vários níveis.

Em primeiro lugar, como exercício de humildade e modéstia: “Nem todos os textos nascem para a literatura, porque esse não é nem o seu objetivo nem a sua natureza. São textos operários, de obra. Servem sobretudo para revelar as insuficiências urbanas, oferecendo soluções e, assim, almejar para que a cidade melhor se qualifique”. É nesta plataforma transcendental que se iluminam os raciocínios, que se agitam as quimeras e se reciclam as vivências contraditórias.

Em segundo lugar, é um exercício de cidadania corajosa, culta, actualizada e com um poder de contágio simpático. Poderá criar um discipulato numa terra arredia ao exercício da liberdade de expressão? Esta é, porventura, a melhor parcela da ‘escola’ Manuel da Silva Mendes em Macau: “Macau não tem disseminada, uma elite pensante em várias línguas (...) É o desenvolvimento do colectivo, da qualificação da cidade enquanto um todo habitado e habitável, que me impele à defesa da cidadania plena, da qualidade e critérios que só podem existir quando se compreender, por via da cultura, que a economia tem de ser encarada como força criativa e não especulativa”. A legitimidade de uma soberania passa também pela construção de novos conceitos referenciais. ‘A Domesticação do Ser’, de Peter Sloterdijk decalca esse caminho permitindo a fuga a verdades perigosamente iluminadas.

Em terceiro lugar é um livro de fronteira. Está desigualmente repartido entre a antropologia filosófica, a ciência política, a literatura de ideias e o pensamento urbano: “Pergunto-me quem terá construído o Teatro D. Pedro V. o estuque original do medalhão da fachada de S.Domingos, o Clube Militar? Quem construiu a bela biblioteca do velho Leal Senado? Os móveis de pau-rosa, de pau-preto ou de Huang hua li, em estilo chinês ou ocidental, já não se fabricam em Macau. Também as gerações de mestres, outrora formados nas escolas salesianas, foram substituídos por mestres sem preparação, seguindo os ditames corrompidos dos sifu. Tudo se vai tornando descartável. A cidade pede qualidade e tranquilidade, mas é-lhe exigida rapidez desvairada, e oferecido ruído, poluição e confusão, também esteticamente”.

A estas preocupações confluem outras mais antigas, mas não menos metafísicas. Recordo as palavras de António Conceição Júnior no prefácio à quarta edição de “Cheong Sam (A Cabaia)”, de Deolinda da Conceição: “Mesmo que nos ignorem, não deixamos de existir. Existir é a nossa força. Fomos e somos aqueles que legitimaram a presença portuguesa”. Esta reflexão eticamente perfeita, dentro dos limites do poder e da razão, deveria ter sido o virar de uma nova página do pensamento filosófico em Macau, sem qualquer descortesia para com outras tentativas. Mas ficou apenas como um bordão identitário a que alguns se agarram.

A educação cívica não é apenas uma necessidade espiritual, é real, cultural, civilizacional e urbana: “Muita falta faz um Corpo de Fiscais Cívicos, com competências para prevenir comportamentos incivilizados, pejamentos, sujidade, e todo um tipo de transgressões que perturbem a ordem e se configurem no complemento do ensino a haver”, porque os problemas radicam nos pormenores: “É o resultado de uma escolaridade maioritariamente anacrónica, onde ninguém leu os Clássicos, originando uma visão estreita e retrógada, reprimida e, assim, despojada dos valores humanizantes que uma formação de âmbito mais avançado aos ensinamentos de Confúcio daria”. Quanto aos Clássicos, nunca é demais lembrar que Pedro Nolasco da Silva trouxe a “Amplificação do Santo Decreto”, Manuel da Silva Mendes apresentou Lao Tse e Chuang Tse e Luís Gonzaga Gomes o “Clássico da Piedade Filial”. Com que intencionalidade é que terão sido lidos?

A dimensão trágica e irracional desponta em todo o lado, em todos os lugares, onde a vontade de poder parece estar contra os valores do espírito. Por isso, António Conceição Júnior nos diz: "Sobram palavras espalhadas pelo chão, desperdícios de vidas dos subúrbios de tantos lugares pintados de silêncios, tão óbvios quanto as omissões praticadas por gentes que vivem abertas dentro de aquários dourados, borbulhando intenções inconclusivas".

Convoco Agustina Bessa-Luís, no seu “Dicionário Imperfeito”, para fechar estas linhas: “A língua portuguesa, ferro de marcar ideias, como um rebanho solto no campo, deve ser usada como milagre e como sabedoria”. E foi isso exatamente que fez António Conceição Júnior.

Na actualização do monumental “Delta Literário de Macau”, José Carlos Seabra Pereira terá de acomodar este novo afluente estético, pluridisciplinar, urbano e cosmopolita, que transcende como nenhum outro os limites da macaulogia tradicional.



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